Gosto de turistas. Chegam determinados, com energia para experimentarem tudo, para irem a todo o lado, para ficarem horas em filas. Os turistas que vejo são gente com energia e boa atitude; pode chover em agosto que arranjam sempre maneira de aproveitar o dia!
Aqui há atrasado, enquanto tomava café depois de almoço, ouvi um rapaz que dizia, alto, que o turismo está a estragar o nosso país. Eu tive vontade de lhe perguntar o que é que há para estragar neste país. Não perguntei porque evito falar com estranhos. Ele continuou a falar: que os turistas vêm por aí abaixo, que usam e abusam dos recursos do país, alojam-se em sítios que foram outrora casas de pessoas e que, apesar disso, conseguem dormir de consciência tranquila. Ele estava mesmo muito irritado, percebi depois, porque chamou-lhes (aos turistas) assassinos, usurpadores de propriedade alheia, agentes da terraplanagem capitalista que nivela tudo pela lógica do mercado (sic).
Com esta última fiquei siderado. Também fiquei satisfeito por ter resistido ao meu impulso inicial de ir falar com o jovem. Há qualquer coisa nestes jovens reivindicativos, com um discurso muito estruturado e cheios de termos técnicos como “terraplanagem capitalista”, que me hipnotiza. Sinto uma mistura de admiração, inveja e desdém; da mesma maneira que misturar bebidas provoca uma embrieguez com potencial de vómito, esta mistura de sentimentos provoca-me tonturas.
Fiquei a matutar muito tempo nesta questão: a responsabilização dos turistas por praticarem o turismo. Concluí, o que finalmente me permitiu deixar de teimar com a memória do rapaz activista, que os turistas não podem ser responsabilizados. Encontrei duas razões para me convencer disso. A primeira: porque eu também sou turista, às vezes; a segunda: porque os turistas são clientes.
A primeira razão é fácil de explicar. Eu gosto de ser turista e fazer das minhas. Estar a sobrecarregar-me com responsabilidades e com pesos na consciência significava que eu teria menos energia e boa disposição quando estivesse de férias. Férias sem energia até é aceitável, mas férias sem boa disposição é inconcebível.
A segunda razão explica-se do seguinte modo: o turismo é um serviço e o turista é alguém que compra esse serviço, ou seja, é um cliente. E se há algo que se sabe sobre os clientes é isto: “o cliente tem sempre razão”; ou seja, cliente tem desejos e a concretização dos seus desejos é suprema e, por isso, inquestionável. Mais: um desejo de um cliente não precisa de ser justificado. Tanto assim é que os serviços de apoio ao cliente fazem notáveis contorcionismos para nunca contra-argumentar com o cliente. O cliente pode querer uma coisa que seja impossível, mas em momento nenhum se pode dizer que o que o cliente quer é um disparate; tem sempre que se explicar que naquele momento, e com muita pena do prestador de serviços, aquilo que o cliente quer não pode ser oferecido.
Ora, quando alguém está no papel de cliente, se quiser ser um bom cliente, deve ser implacável com todos os obstáculos que sejam colocados entre o seu desejo e a concretização do mesmo. Imagino o bom cliente como sendo aquele que tem a paciência e a impulsividade de uma criança de 3 anos. Esse cliente é exigente de uma maneira que obriga a que o Mercado se torne mais eficiente.
O cliente, assim, tem um papel muito específico: o de desejar e o de exigir a concretização dos desejos. Atribuir-lhe responsabilidades significa que estaríamos a pedir ao cliente para analisar os seus desejos antes de os desejar. Esta tentativa de responsabilização dos clientes impõe uma ética, uma moral, uma deontologia, que põe em causa os alicerces da noção de cliente; o desejo que subjaz a acção do cliente deixa de ser espontâneo e passa a ser condicionado. O desejo, injustificado, deixa de existir; o bom cliente desaparece.
Há uma cena da série “Friends” que ilustra com grande eloquência a noção de turista/cliente de que falo. A série gira em torno de seis pessoas que praticam a amizade entre si. Duas dessas pessoas, o Ross e o Chandler acabam, no episódio 19 da temporada 9, a partilhar o quarto de um hotel. Antes de darem saída do dito quarto, Ross exorta Chandler a que, ao saírem, coloquem nas malas tudo aquilo “a que têm direito”. A palavra-chave é “direito”.
Segue parte dessa conversa: