De 365 em 365 dias, cada um de nós tem direito a um concerto de canto a capella onde é interpretada a conhecida canção “Os Parabéns”. Os cantores raramente ensaiam e por isso o concerto é mau. Contudo, no final da canção está toda a gente satisfeita: os intérpretes, porque puderam cantar de qualquer maneira (dando asas à sua liberdade artística), e o aniversariante, porque foi alvo de uma homenagem.
Fiz recentemente parte de um coro que cantou “Os Parabéns”. Recordo esse momento:
Parabéns a você,
Nesta data querida,
Muitas felicidades,
Muitos anos de vida.Hoje é dia de festa,
Cantam as nossas almas,
Para o menino fulano,
Uma salva de palmas.
A extensão
Quando me preparava para bater palmas, seguindo a instrução do último verso da canção, fui surpreendido por pessoas que continuaram a cantar. As suas vozes deram corpo aos seguintes versos:
Tenha tudo de bom,
Do que a vida contém,
Tenha muita saúde,
E amigos também.
Fez-se silêncio. Alguém começou a bater palmas, mas o grupo continuou:
Hoje o fulano faz anos,
Porque deus assim quis,
O que nós desejamos,
É que seja feliz.
Silêncio outra vez. Seria este o momento certo para bater palmas? Era. Depois do “É que seja feliz”, o grupo que cantou estas novas estrofes começou a bater palmas e a assobiar em grande algazarra. Poderia parecer que estavam numa festa só deles, como se tivessem conseguido subir ao palco num concerto de outra pessoa e cantado uma das suas músicas. Mas percebi que estavam felizes pelo aniversariante porque se viraram para ele, bateram palmas, assobiaram, agitaram as mãos na sua direcção e gritaram “Viva o fulano” várias vezes. Eu fiquei satisfeito por poder bater palmas, finalmente. Que alívio!
Depois de comer o bolo de aniversário, acabei a conversar com um dos elementos do grupo que introduziu as novas estrofes. Fiquei a saber que se tratam de versos que aumentam a tradicional “Os Parabéns” e que se fixaram nos últimos 10 a 15 anos. Houve várias tentativas para aumentar a letra d’“Os Parabéns”, disse-me o tal elemento, Não é recente essa vontade. Houve vários poetas que tentaram deixar a sua marca na história acrescentando pequenas quadras com rima simples ABAB mas nenhuma dessas quadras vingou. Imagine a fama que teria o poeta que conseguisse estender “Os Parabéns” com algum dos seus versos. Mas, curiosamente, estas duas novas estrofes que cantamos, ninguém sabe quem criou. Apareceram espontaneamente. Eu gosto de imaginar que se tratou de uma expressão da energia que se cria quando se celebra a existência de alguém querido. Estes versos são a cristalização da alegria de viver. Parece-me muito bonito, tudo isto, não acha?
Quando voltei da festa fiquei a pensar nas novas estrofes que cresceram à canção “Os Parabéns” e concluí que não gosto delas.
A primeira estrofe
A primeira estrofe da extensão é redundante. Ter saúde e amigos são coisas boas da vida; quando se diz
Tenha tudo de bom,
Do que a vida contém,
já se está, por isso, a incluir aí, implicitamente, a saúde e os amigos. Mas, a seguir, remata-se com
Tenha muita saúde,
E amigos também.
Isto é uma repetição. Estão a repetir-se votos que já tinham sido formulados nos dois primeiros versos da estrofe. Será que isto visa indicar que se deseja enviar não uma, mas duas doses de votos de saúde e amigos? Mas porquê duas doses? E porquê especificar o número de doses? Se se está a desejar um número de doses específico, que se desejem doses maiores, tipo um trilião de doses de saúde e amigos. Ou a intenção é a de desejar apenas duas doses de saúde e amigos? O aniversariante não merece mais do que duas? Porquê? Pode constipar-se?
Além disso, “Os Parabéns” original contém o seguinte:
Muitas felicidades,
Muitos anos de vida.
ou seja, formula o desejo de que o aniversariante tenha uma vida longa e feliz. Uma vida longa e feliz é uma vida à qual não falta:
- saúde, pois a ausência de saúde provoca tristeza e, em casos mais extremos, encurta a vida;
- amigos, pois a solidão também provoca tristeza.
Não sei se já tinha dito, mas a primeira estrofe da extensão é redundante.
A segunda estrofe
A segunda estrofe da extensão é, sobretudo, uma desmancha-prazeres. É sabido que um aniversariante, em geral, é o centro de uma festa de aniversário. Por assim ser, o aniversariante sente-se feliz e confiante: está com o ego inchado. O momento do concerto d’“Os Parabéns” é a apoteose da festa: é o momento onde a individualidade do aniversariante é sublinhada, celebrada e acarinhada sem freios. O que a segunda estrofe faz é introduzir uma mensagem que neutraliza impiedosamente a celebração da individualidade do aniversariante. É uma agulha que fura o balão do ego insuflado do aniversariante. Os versos
Hoje o fulano faz anos,
Porque deus assim quis,
chamam a atenção do aniversariante para a sua pequenez e insignificância. No momento exacto em que o ego do aniversariante é levado mais alto, este é lembrado de que, afinal, por mais alto que esteja o seu ego, deus ainda está mais alto. Ao trazerem deus para a canção “Os Parabéns”, estes versos impedem a celebração plena da individualidade do aniversariante, porque o que quer que o aniversariante tenha feito para chegar até àquele momento, nada disso é mérito seu: tudo se passou “Porque deus assim quis”.
Note-se que aceito a ideia de deus como responsável por tudo o que se passa no mundo (tudo mesmo), e não me oponho à necessidade de, periodicamente, sermos lembrados da sua grandeza de modo a exercitarmos a nossa humildade; mas numa festa de aniversário? No momento em que se canta “Os Parabéns”? A festa de aniversário é um momento de celebração, e como qualquer celebração, é o momento onde a pequenez da condição humana é ignorada, onde se esquece que a vida é finita, onde não há uma, nem duas razões para estar feliz: há um trilião. Temo que esta tendência de fazer crescer novas estrofes a canções clássicas se possa transmitir. Imagino, com esgares de dor a percorrerem-me a cara, o que poderá vir a acontecer à música da Liga dos Campeões ou à “We are the Champions”.