É difícil controlar a bexiga; ainda mais os intestinos. Tudo seria mais fácil se fosse possível calar as suas vontades, pôr em pausa os seus desejos, os seus barulhos, as suas pressões. Mas é escusado sonhar. A qualquer momento vemo-nos confrontados com a necessidade de dar vazão aos pedidos queixosos destes elementos corporais, e nem sempre estamos em casa, ou sozinhos no meio de uma floresta com capim. Em geral, estamos num sítio onde o acesso aos esgotos é feito via cubículos colocados numa casa-de-banho pública. Com sorte, temos papel higiénico. Sem sorte, o chão está molhado, a sanita entupida e a porta do cubículo não tem trinco.
É costume revestir de papel higiénico os bordos das sanitas públicas. Diz-se que é boa ideia que não coloquemos a pele das nádegas em contacto com superfícies onde peles de outras nádegas tocaram. Há quem goze com esta prática. Eu entendo o gozo, e entendo a prática; ou seja, gozo com a prática enquanto a pratico, o que é bom entretenimento e me ajuda a lidar com o desconforto de fazer cocó fora de casa.
Vasculhei as minhas memórias para identificar o momento em que comecei a usar casas-de-banho públicas: foi na minha primeira comunhão. Nessa altura, instado pela minha mãe, fiz o meu melhor para colocar papel higiénico no bordo da sanita. Não me lembro se ficou muito bem, porque estava muito aflito. Desde então, creio que nunca mais usei a sanita de uma casa-de-banho pública sem antes adornar o seu bordo com papel higiénico. Pensei, por isso, que esta minha prática, apesar de fazer parte do folclore sanitário, era meramente um hábito adquirido, nada tinha de racional. Após ter chegado a esta conclusão, precisei de ir à casa-de-banho e decidi que não iria gastar o precioso papel higiénico no revestimento do bordo da sanita. O papel higiénico foi feito para limpar coisas, cocó e xixi sobretudo, não foi feito para ser desperdiçado como revestimento do bordo de uma sanita. O papel higiénico que é colocado no bordo da sanita, depois de termos feito o cocó e de nos limparmos e de nos levantarmos, está impecável. Está imaculado. Está pronto para ser cuidadosamente dobrado, colocado no bolso e, quem sabe, ser usado mais tarde para limpar um pingo de sopa que caia na mesa durante o almoço, para assoar o nariz, ou para servir de guardanapo e limpar a ponta dos dedos após comer o pastel de natas a meio da tarde. Contudo, a este papel higiénico ainda cheio de potencialidades, o que é que se faz? Deita-se à sanita, juntamente com o papel higiénico sujo de cocó e, pimba, autoclismo em cima de tudo, adeus papel, foi bom ver-te. Distraído a pensar nisto, e já agachado, a escassos centímetros de fazer tocar a pele das minhas nádegas na superfície fria e solene da porcelana da sanita, hesitei. Fiquei uns segundos parado, sem me mexer, e depois voltei a endireitar-me. Enchi os bordos da sanita com papel higiénico e,finalmente, fiz o cocó.
O que aconteceu naquele dia foi a descoberta da verdadeira razão pela qual uso papel higiénico para revestir os bordos das sanitas públicas: o conforto. A casa de banho pública é desconfortável por ser um sítio público onde temos que fazer coisas íntimas, pessoais, privadas. A única coisa privada no cubículo de uma casa-de-banho pública é o papel higiénico. O papel higiénico é a representação daquilo que é nosso, num local onde nada mais é nosso. Talvez seja por isso que é tão reconfortante encher os bordos da sanita de papel higiénico e assentar as nádegas nesse papel. O papel é a protecção que temos contra a louça pública daquela sanita. Se nos sentarmos na película de papel higiénico em vez de nos sentarmos directamente na louça, estamos a sentar-nos em algo que é nosso e não é de todos. Ao executarmos essa ginástica paciente de equilibrar papel higiénico no bordo da retrete, estamos a construir um sucedâneo possível da nossa sanita, na nossa casa-de-banho, na nossa casinha; estamos a tornar mais realista o simulacro de privacidade alicerçado no próprio cubículo.