A palavra presépio (sinónimo de estábulo) é também utilizada, sobretudo no mês de dezembro, para fazer referência à cena do nascimento de um bebé. O nascimento desse bebé foi tão marcante que, embora tenha acontecido há muitos, muitos anos, ainda hoje é celebrado. A grandiosa celebração é a festa de aniversário mais popular do mundo mas, ao contrário do que seria de esperar, tem tido sempre o mesmo tema: o universo obstétrico do pós-parto em condições não assépticas. Um tema arrojado, no mínimo. Imagino que a primeira festa de aniversário usando este tema tenha sido um sucesso; os convidados devem ter ficado a falar do evento até meados de janeiro do ano seguinte. Contudo, a esta distância temporal desse primeiro aniversário vanguardista, anoto três problemas com a repetição ininterrupta do tema:

  • a repetição ininterrupta do tema;
  • o correcto aproveitamento do tema;
  • a opinião do aniversariante acerca do tema.

A repetição ininterrupta do tema

Qualquer repetição está condenada a tornar-se aborrecida. É inevitável. Da mesma maneira que o nosso sistema digestivo converte acepipes em cocó, o nosso neocórtex converte em trivialidade qualquer experiência que se repita mais do que algumas vezes. Ora, uma festa anual que acontece religiosamente há centenas de anos e sempre com o mesmo tema conduz ao aparecimento de uma dormência relativamente à celebração; dormência essa que só é interrompida para abrir os presentes, que são, efectivamente, a única coisa que é novidade a cada ano.

A repetição do tema é uma teimosia cuja única vantagem é o facto de não dar trabalho. Porque é sempre a mesma coisa, ninguém tem de se esforçar, o que significa que ninguém se esforça. As pessoas repetem os mesmos rituais: vão à festa, levam os mesmos adereços de sempre (provavelmente adereços que estiveram o ano todo na arrecadação e que só são tirados nesta altura), dizem as coisas do costume “Felicidades”, “Como é bom ter a família reunida”, “Os miúdos crescem tão rápido”, “Ui, que belas rabanadas!” e está feito. Uma festa morna, sem surpresas, sem agitação. Ou seja, uma festa sem festa. O pessoal dispersa rápido: vai à festa, vê e é visto, e segue para ir tomar um copo com os amigos. Uma festa com esta tradição, com este lastro histórico, não merece isto.

Se o tema da festa mudasse, talvez esta se tornasse mais interessante, ou pelo menos, talvez afastasse, com um espanador, o pó da apatia. Sendo assim, propõem-se maneiras, que podem ser adicionadas à tradição, de criar um sistema de variação do tema da festa de aniversário.

Decidir novos temas a cada 20 anos: de 20 em 20 anos, reuniam-se os melhores organizadores de festas do mundo para decidirem a temática das festas de aniversário para os 20 anos seguintes. Dessa maneira, todos tínhamos tempo para preparar a nossa participação nessas festas. Além disso, porque sabíamos já quais eram os temas, criar-se-ia antecipação. Imagino as pessoas a celebrar um dos aniversários e a dizer “mas para o ano é que vai ser… Anseio pelo tema Tina Turner.”

Gala de sorteio do tema no dia 1 de dezembro: pessoas qualificadas determinavam 100 temas de festa de aniversário que seriam adicionados à doutrina. Estes temas ficariam gravados na tradição e tornar-se-iam sagrados. Depois, a cada 1 de dezembro, havia o sorteio do tema da festa o aniversário desse ano. Era uma grande cerimónia, tipo Eurovisão, que durava o dia todo. Havia o momento da colocação dos temas na tômbola, havia suspense, e depois havia o momento em que se retirava o tema escolhido. Havia pessoas no público; havia clubes de fãs de certos temas, que todos os anos iam para a plateia gritar pelo nome do seu tema favorito; havia comentadores, estatísticas, etc. Muito giro.

O correcto aproveitamento do tema

Mas criar toda a estrutura doutrinal e logística para mudar de tema todos os anos dá muito trabalho. Se se quiser manter o mesmo tema e, mesmo assim, tornar a festa mais interessante, então é necessário explorar mais o tema que temos em mãos.

O tema “universo obstétrico do pós-parto em condições não assépticas” é arrojado. Começa por ser arrojado na extensão conceptual. A obstetrícia é uma área de conhecimento vasta, que inclui questões anatómicas e psicológicas não apenas de um ser humano, mas de, pelo menos, dois. Além disso engloba os vários momentos do aparecimento de novos seres humanos, desde o desenvolvimento intra-uterino, até ao nascimento propriamente dito; vai ainda ao ponto de incluir como objecto de estudo o momento do pós-parto e da recuperação da parturiente que, findo o processo do parto, entra no puerpério.

Embora a obstetrícia seja uma matéria vasta, o foco do tema da festa de aniversário é o pós-parto, o que reduz o ligeiramente o horizonte conceptual. Mas se por um lado o pós-parto afunila a temática, a falta de assepsia expande-a. Porque sendo as condições do pós-parto não assépticas, a amplitude do tema cresce exponencialmente. A quantidade de coisas que podem acontecer em ambientes não assépticos é incomensurável. É possível haver infecções pequenas, infecções grandes, infecções cujo tratamento é simples, infecções que não precisam de tratamento, infecções que deixam mazelas; os cheiros provocados pela falta de condições de higiene; enfim, é um manancial de possibilidades.

Apesar do tamanho do tema, das suas nuances, das reentrâncias e pormenores, quase nada foi explorado nas centenas de anos em que se celebra o aniversário em causa. A cena é sempre a mesma: é exposta uma representação mais ou menos realista do aniversariante recém-nascido, semi-nu na maior parte das vezes, a mãe puérpera com um ar cansado e calmo, o pai meio despistado, uma vaca e um burro (numa alusão ao estábulo) e uns mirones que vieram ver o que se passava no estábulo. E é isto. A insistência nesta representação pitoresca e inocente é um travão que é posto ao tema da festa. Um tema vasto e arrojado que atravessa a história sem nunca perder a actualidade (sempre houve pós-partos em condições não assépticas, que eu saiba), acaba reduzido a uma peça de artesanato exposta a um canto, no meio de outros adereços. No fundo, está-se reduzir o legado temático que foi definido nos primórdios desta celebração a um enfeite de barro.

Note-se que não considero o enfeite aborrecido. Acho que o enquadramento é rico. Há várias texturas emocionais, há um rendilhado de companheirismo que abrange a família nuclear (mãe, pai e bebé), as criaturas que gentilmente cederam as suas acomodações para o momento (a vaca e o burro), e os mirones que andavam por ali (pastores). É um resumo eloquente que liga o espaço doméstico (a família) e o espaço público (os pastores), que engloba a política e a ecologia. É realmente uma imagem forte. Mas não deixa de ser uma imagem que contém um recém-nascido envolto em trapos, cansado e com fome, e uma mulher que acabou de entrar no puerpério. Aquele momento congela estas realidades de uma maneira muito crua. É um final fechado.

O que se pode fazer? Ou melhor, o que se poderia ter já feito? Muita coisa. A começar por associar a esta festa o cheiro a álcool etílico, iodopovidona ou outro desinfectante hospitalar, numa referência à assepsia. O bebé que nasceu, nasceu em condição não assépticas, mas essa realidade não é, de todo, desejável.

Mais: porque não fazer enfeites que representem, em tamanho grande, as bactérias que podem surgir em condições não assépticas?

E pegando na questão do pós-parto: os cânticos que se entoam nesta festa de aniversário, além d’“Os Parabéns”, também poderiam conter referências às transformações que sofre o corpo da parturiente, às hormonas que são segregadas, falar um pouco do cordão umbilical e da epidural (que não foi usada, certamente, no nascimento do nosso bebé).

Dezembro, no hemisfério onde eu vivo, é um mês frio. Há algumas roupas típicas da época, roupas quentes que protegem as pessoas desse frio. Porque não introduzir vestuário alusivo ao parto? Cachecóis alusivos ao cordão umbilical; casacos e camisolas que se assemelhem a sutiãs de amamentação; casacos impermeáveis e almofadados com o aspecto de fraldas descartáveis. E porque não, nas refeições feitas em celebração deste aniversário, toda a gente beber as suas bebidas de um biberão?

E o aniversariante?

Finalmente, o aniversariante. Numa festa de anos com esta amplitude, o aniversariante é mais um adereço da festa do que o pólo atractivo da mesma. Quando há festas deste tamanho toda a acção se desenrola em torno da casa de banho e da mesa onde está a comida e a bebida. O aniversariante “vi-o ali, há pouco”, “anda por aí”; está em toda a parte e em parte nenhuma, ciranda, ciranda sem nunca estar tempo suficiente com ninguém.

O que certamente consola o aniversariante numa festa deste tamanho é:

  1. o facto de poder vir a ser convidado por um dos seus convidados para festas semelhantes;
  2. o facto de poder estar a proporcionar alegria e felicidade aos seus próximos;
  3. e finalmente, o maior consolo de todos, ter uma festa incrível a decorrer com a decoração, a música, a comida, tudo à sua maneira, tudo idealizado por si.

Ora neste último ponto, há um problema com o aniversário de que vimos falando. O aniversariante, que se saiba, não teve voto na matéria quando se decidiu a temática da sua festa de aniversário. É possível que até goste da temática, nunca lhe perguntei, mas arrisco a considerar que não gosta. E as razões para a minha opinião não são complexas, não derivam de informação privilegiada ou de cálculos transcendentais. É puro bom senso.

Será que o aniversariante em causa (qualquer aniversariante, na verdade) gostaria que as suas festas de aniversário fossem subordinadas a um tema que visa o exacto momento do seu nascimento? Será agradável para o aniversariante, ano após ano, ver que na sua festa de aniversário existem milhares de representações da cena do seu nascimento? Mais ainda: como se sentirá ao ver que, no mês do seu aniversário, está espalhada por toda a parte uma fotografia detalhada desse momento, em que ele se encontra vestido com trapos e os pais estão cansados, num local desarrumado, sujo, e a partilhar o espaço com uma vaca e um burro? Enfim.

Feliz aniversário!