Os manifestantes reuniram-se na praça central para reivindicar por mais tempo para fazerem a limpeza da sua própria casa. Vistos da varanda da câmara municipal, os cartazes com as palavras de ordem pareciam velas de pequenos barcos a navegar sobre a multidão. Lia-se, por exemplo,

“JÁ NÃO VEJO O CHÃO PORQUE ESTÁ CHEIO DE COTÃO”

ou ainda

“SE PARECE ESTAR NEVOEIRO É PORQUE OS VIDROS DAS JANELAS ESTÃO SUJOS”

e também, num cartaz um bocado isolado,

“EU SEI QUE CHEIRO MAL, NÃO TIVE TEMPO PARA LAVAR A ROUPA”

Alguns manifestantes manuseavam cópias de um estudo onde se concluía que as casas de hoje estão 45% mais sujas do que há 20 anos: há mais pó nos cantos, mais manchas nos fogões, as roupas demoram mais tempo até serem lavadas. Desse estudo, que consegui ver com dificuldade, destaco um gráfico:

Perguntei onde tinha sido publicado o estudo, quem o tinha levado a cabo, qual era a fonte dos dados. Ninguém me soube responder. Uma das pessoas disse-me que era irrelevante a fonte, porque o estudo “era uma mera formalidade”. “O facto de que há cada vez menos tempo para limpar a casa é uma evidência.”, rematou.

Muitos dos manifestantes estavam preocupados porque, por terem a casa tão suja, tinham nojo e medo de lá estar. “É viver em estado de alerta constante. A casa é o local onde me quero sentir seguro e confortável. Mas eu não consigo manter a minha casa segura e confortável porque não tenho tempo para a limpar”. Entrevistada à margem desta manifestação, uma psicóloga declarou que ainda tem roupa suja do verão passado e que, na sua prática profissional, tem verificado que a sujidade das casas é contagiosa aos restantes domínios da vida. “Há pessoas a procurar ajuda porque dizem que não têm vontade de cortar o cabelo, de aparar a barba ou de lavar as canelas. Há quem tenha desistido de lavar as costas quando toma banho.” Em lágrimas, esta psicóloga acabou por declarar que é urgente que as pessoas tenham tempo para a sua casa e para si.

Ouvi dois manifestantes em conversa: “E depois ainda dizem para limparmos a casa ao fim-de-semana… O fim-de-semana não dá para nada! No fim-de-semana faz-se um bocado de tudo o que não foi possível fazer durante a semana. E pelo caminho é preciso socializar, ir ver os familiares, ir ao supermercado. E a casa? O cotão propaga-se, a roupa suja acumula.

Um professor de físico-químicas, especialista em termodinâmica, subiu ao palanque improvisado para dizer que “as leis da física são mais fortes que as leis do mercado”. E continuou: “As leis da física são inegociáveis. E a segunda lei da termodinâmica é clara: a sujidade é gerada inexoravelmente a toda a hora. Não pára, nem vai parar; de maneira nenhuma. Estamos prontos para ser engolidos por tufos de cabelo, montanhas de cotão? Estamos dispostos a ter medo de tocar nas superfícies dos móveis porque pode-se levantar um nuvem de pó que nos provoca um ataque de tosse? Estamos dispostos a que a sujidade e a porcaria nos expulsem das nossas casas, nos expropriem do nosso espaço privado, uma das grandes conquistas da civilização?

Não basta que a rua esteja limpa. O espaço privado também precisa de ser limpo. Não conseguir limpar a casa é uma forma de pobreza. Da mesma maneira que há pobreza energética, também há pobreza higiénica.” Declarações concisas, mas veementes, proferidas com o punho fechado, por uma das organizadoras deste evento: uma pessoa que trabalha a limpar escritórios mas que tem a casa tão suja que o seu cão prefere dormir na rua.